16 julho 2010

O Vão da Porta 4


Turbulento... Foi tudo desmedidamente turbulento para mim. Não sei ao certo em que momento, mas agarrei-me ao seu corpo inerte na tentativa de acordá-lo. Meus braços envolviam todo o seu peito e suas costas, sua cabeça pendia, suas mãos abriam-se completamente impotentes. Lá estava eu, segurando aquele que me fez rir e chorar por tanto tempo. Lá estava eu, pranteando um sujeito inconsciente, com a tola esperança de que minhas lágrimas tardias ressuscitassem o estranho que invadia o tão conhecido aconchego da minha introspecção. Não soube o que fazer, além de chorar, claro. E também não sei explicar o motivo de tal atitude, já que ele deveria ser para mim um sinônimo de repulsa. Sei apenas que os minutos escorriam no relógio da cozinha, com aquele tique-taque insuportável...
O amarelo que entrava pelas cortinas entreabertas indicava uma manhã fria, diferente das demais. Meu coração indicava reações diferentes das demais. Meus olhos evidenciavam tal fato.
E, novamente digo: tudo que fiz foi esperar um maldito milagre. Ou um sinal de que ele não voltaria a me olhar com o tão inflamado jeito de apaixonado arrependido. Em português claro: esperava vê-lo morto, quem sabe assim eu não me colocasse em posição de risco outra vez, não me humilhasse diante de um mero sentimento. Se ele morresse, sem dúvida, eu sentiria dor... Uma dor jamais experimentada por mim ou por qualquer maldito poeta, escritor, filósofo.

Porém, seus olhos abriram após dois ou três minutos. Dois ou três longos, aflitos e nostálgicos minutos de reflexão.

Silenciosamente, seus olhos foram abrindo pouco a pouco, mostrando o clarear da vida. E é justamente essa à hora na qual me encontro.
Minhas pernas estão dormentes, meu rosto está inchado, meus lábios úmidos pelas tantas lágrimas que continuam brotando sem que eu me esforce ou queira. Meus pensamentos disparam feito tiros no meio da escuridão. A mais profunda escuridão que já enfrentei. Uma obscuridade permeada de arcanjos caídos, corrompidos pelo medo de sentirem-se mais e mais humanos... Ou, o meu medo de ceder novamente às tentações.
“Oi...” Suas palavras saíram inesperadas, fragmentando meu raciocínio obtuso.
“Não diga nada agora, por favor.” Meu pedido foi sincero, visto que eu precisava esclarecer alguns pontos, antes que ele se levantasse e caminhasse pela minha sala. “Eu queria... Dizer algo que está preso na minha garganta. Preciso desabafar, porque é impossível continuar dessa maneira tão insuportável. Não posso olhar para você sem lembrar do que houve, quando éramos jovens. E, de repente te vejo na minha porta, esperando um convite de boas-vindas com o meu melhor sorriso de surpresa. Maldita surpresa! Meu universo ficou em choque, eu fiquei em choque!” Preciso fazer uma pausa de vez quando, escolher as melhores palavras e organizar as idéias para não perder a compostura (porém, é impraticável não transparecer a minha fraqueza, pois ele me deixou fraca).
“Se tivesse que fazer um apanhado geral, recapitular os últimos episódios de minha vida e dizer o motivo exato pelo qual os vivi, precisamente neste instante diria que foi tudo por você. Cada agonia enfrentada, cada palavra de solidão, a própria solidão, enfim, todas essas desventuras foi você quem causou, querendo ou não.”

Mais uma pausa dramática. Não sei quais termos usar.

“Quando menina, meu único sonho era encontrar o famoso príncipe encantado das fábulas. Na realidade, eu esperava que pudesse viver em uma constante fábula. Não tive tempo de conhecer meu pai. Meu avô sempre teve uma saúde frágil e minha mãe, bom... Você sabe tão bem quanto eu que ela vivia à custa de sua ilusão. Mas minha infância foi boa. E minha adolescência foi melhor ainda, principalmente depois que te conheci. Lembro-me perfeitamente da primeira vez em que nos vimos: estávamos em lados opostos do corredor, andando cada um com seus materiais e suas preocupações. Esbarramos-nos e eu te olhei de um jeito feio. E voltamos a nos esbarrar mais umas três ou quatro vezes (em uma delas eu tropecei, você quis me ajudar, mas recusei por orgulho...). Conversamos, como duas pessoas normais (como se adolescentes pudessem ser normais) na festa de quinze anos da minha amiga, que te convidou somente para nos conhecermos bem...” estou rindo, confusa e melancólica. Ele parece estar recordando esses dias dourados. Acredito que assim funcione uma iminente recusa: você diz que precisa despejar as tais verdades abruptas, começa com o passado mais que perfeito em que ambos vivam paixão, imprudência, aventura e romance. A pós-memória, porém, é outra história.

História essa pertencente ao particular dos casais... E o meu particular determina que eu continue falando de dias nos quais nos amávamos e rolávamos na grama sem as atribulações existentes hoje. Sem as despedidas que não foram dadas... As partidas repentinas...
“Escuta, por...”
“Não, não fale nada, por favor, deixe-me terminar, antes que isso me consuma, antes que eu não consiga respirar sem olhar o nosso caso mal terminado. Afinal...” Não chore, não chore, agüente mais um pouco, falta muito pouco...

Caí em fraqueza, sucumbi diante de minhas próprias desculpas.
Chorei.
Por um átimo de segundos, me arrependi de todos os erros cometidos.
Entretanto, logo essa sensação viajou para além de minha compreensão. E sumiu...

Ele se levantou ainda meio zonzo. Não pude e nem quis ajudá-lo. O que senti foi mais forte, arrebatador, eu diria. E continuo sentindo. Falar com lágrimas quentes rolando de seus olhos, passando pelo nariz, escorregando e invadindo cada canto do seu corpo como um intrometido que vigia, vasculha e sente prazer em vê-la sofrer piora em muito as condições de quem pretende argumentar...
Ou seja, não estava em condições de dialogar. Ainda não estou. Descrições são de bom tom, não é? Pois bem, mesmo com a visão embaçada, vejo-o sentado no sofá que fica exatamente ao meu lado: está com a cabeça baixa outra vez, provavelmente pensado no que eu estou pensado, tentando processar todos os fatos, todas as recordações e, esforçando-se para não chorar junto comigo.
Sim: essa situação toda pode parecer um extenso monólogo, mas as condições, as palavras, a paixão por trás da paixão. Tudo isso me motiva a continuar projetando um falso amor, uma esperança frágil, sensível como eu, doce da mesma maneira como eu era doce antes de me encontrar na solidão.

Está na hora de retomar o controle. Está na hora de finalizar.
“Eu te amo, é tudo o que posso dizer em relação ao nosso caso. É tudo que me resta, sairei ferida em mais uma ocasião e, por mais esforços que façamos, nosso conto de fadas chegou ao fim. Chegou ao fim exatamente quando você evaporou da minha vida, criando pústulas em um canto muito espaçoso do meu coração.”
Mais uma droga de pausa dramática em que pensei se deveria ou não falar. Eu falo.
“Sabe, por muito tempo me questionei: por que fugi de casa? Por que abandonei os caprichos que tinha? Por que você não me levou junto contigo na sua tão gloriosa empreitada? Por que me torturei tanto tempo sentindo essa saudade latente no peito? Mas, felizmente encontrei resposta: Eu nunca quis me separar de você. Nunca quis encarar uma realidade em que nosso relacionamento, do dia para a noite, não existisse mais. Vi por vezes o nosso primeiro encontro “oficial”, por assim dizer, quando combinamos de matar aula de química e nos encontramos na escadaria da escola, aquela que dava acesso ao refeitório. Ninguém nos incomodou naquela tarde, pois só existiam nosso ardor e o singelo amontoado de rosas roubadas por ti e oferecidas a mim, o qual chamei carinhosamente de buquê. E, interiormente eu agradecia a minha amiga por ter te convidado para a festa dela, sem ao menos conhecê-lo direito, com o único intuito de me ajudar, ou nos ajudar. Nós duas conversamos até hoje, sabia? O mais irônico é que ela é casada, tem um filho e está grávida de seis meses também. E esse eu esperava que fosse o nosso final... Ficar contigo para o resto dos meus dias parecia ser um compromisso simples. No casamento dela, eu fui madrinha e não parei, um só instante, de chorar. Não chorei por ela, chorei por mim. egoísta, não é mesmo? Tudo porque eu acreditei em promessas de adolescentes bobos.”

“Não diga isso”, ele sussurrou ao pé do meu ouvido, enquanto eu, sentada no chão na mesma posição há horas, contava minhas amarguras a um sujeito que não me é mais familiar. Olhei para frente tentando digerir a última frase. Impraticável. Impossível.

Injusto comigo e com meus sentimentos.
Por Deus, em qual hora estamos? Quanto mais demorarei a chegar aonde quero? Se é que quero chegar a algum lugar.

“Na realidade, nunca quis desaparecer da vista da minha mãe, nem abandonar meu avô, minha casa, meu quarto, minha cama... Eu gostava daquele espaço e havia aprendido a conviver com as pessoas que o habitavam. Mas queria te encontrar. Queria me encontrar. Como uma garota rebelde foge de casa e deixa o celular ligado para atender quando lhe for conveniente? Simples: Ela não o faz, esquece celular, telefone, qualquer meio de mostrar as caras. Portanto eu não fugi. Apenas dei um descanso a mim. E, me tornei extremamente egoísta, me tornei uma criatura insensível.”

“Você não parece tão insensível assim. Continua a mesma...”. Não podia suportar comentários desse tipo, vindos dele. Ou de qualquer outra pessoa. Rejeitei esses murmúrios, tentei afastá-los ao máximo. Tentei...

“Sempre que escutava nossa música tocando nas rádios, eu parava, onde estivesse, como se aquela música fosse o meu hino, um símbolo de paz, um lugar aconchegante, onde as lembranças eram ternas, como em um trailer de filme americano. E todos os nossos melhores momentos voavam na minha memória. A memória da garota estúpida. Da sonhadora infeliz. Da imbecil que... da imbecil que acreditou nas suas promessas!!!!!!!”

“Não, isso não é verdade, eu sou o culpado...”

“Nós dois somos culpados, e agora pensamos em cometer o mesmo crime de novo? Que tipo de criminosos nós somos? Não possuímos a capacidade de admitir sermos péssimos no que fazemos?”

“Deveríamos experimentar uma segunda chance...”

“Não dará certo, isso te garanto. Ficaremos presos, enjaulados nessa insanidade...”, dessa verdade ele não poderia escapar.

“Cause it's you and me and all of the people
With Nothing to do, nothing to lose
And it's you and me and all of the people and
I don't know why I can't keep my eyes off of you”.


Ele cantou o refrão da música. Ele ainda se lembra. Está na hora de encarar meu problema de frente. De olhá-lo nos olhos. Os malditos olhos que sempre pedem perdão.

“Quer cantar mais uma vez?”, pergunta tola, é claro que quero.

Passar o resto da manhã cantando a música que embalou meus sonhos de jovem apaixonada sem dúvidas é um capricho diferente. Triste, doloroso, mas necessário. Por um instante pude ver a praça onde costumávamos fazer esse tipo de coisa. Vi as crianças correndo atrás de cachorros, os senhores de idade jogando damas. E outros casais apaixonados.

Porém, não tão apaixonados quanto nós dois.

O frio crescia conforme o tempo passava. O sol ficava mais forte. Lá fora, o dia passava depressa ou devagar demais. Sinceramente não reparei nesses detalhes.

Nós dormimos no sofá por três ou quatro horas, acredito.
Foi bom. Todavia, é preciso terminar.

Dizem que, ao entardecer os mais íntimos desejos ganham ânimo, fôlego de vida. Os meus, porém, iam morrendo em uma quietude sepulcral.


“Eu nunca quis te abandonar. Muito menos deixar de amar você. Apenas fui fraco...”, eu sabia disso, ou pelo menos suspeitava.
Queria crer que fosse verdade.

“Eu nunca deixei de amar você, mesmo que pareça masoquista, insano ou clichê. O que significa que eu te amo. Ainda.”

E isso deve acabar. De maneira indolor. Bom, seria ideal assim, mas a realidade nem sempre é essa.

“Já está na hora?”, sua pergunta aliviou um peso das minhas costas, como sempre acontecia quando ele via que eu não suportaria dizer algo.


“Sim... Já está na hora.”

“Um último beijo de adeus?”

Será que devo? Será que isso me fará bem?Tantas perguntas e nenhuma atitude...

O fim de tarde não ajudava a diminuir a pressão sentida contra meu peito.
Talvez fosse amor, talvez fosse ódio, ou um misto dos dois.

O tempo passou depressa para mim, para ele, para nós dois e para ninguém mais. Eu derramei minha última lágrima por ele.

Acredito que isso basta.

“Me desculpe, mas não posso...”

“Nós nos veremos?”

Uma questão peculiar. Somente o destino tem poderes para responder.
Meus argumentos acabaram. Minhas táticas também.

O melhor a fazer é abrir a porta. Esperar que ele vá embora. Desejar boa sorte e até mais ver.

Pronto, a porta está aberta novamente, porém desta vez eu a abri para que ele saía de mim, do meu coração, da minha história.
Do meu passado não, afinal ele foi lindo demais para ser esquecido.

“Cuidado para não desmaiar outra vez, sim?”
“Claro, claro...”, ele cambaleou até a porta... Que fosse charme, chantagem, não funcionaria comigo. Não mais. A partir do instante em que ele atravessou minha porta e saiu da minha intimidade, eu não o ajudaria por um período indescritível.

E saiu. De uma vez por todas.
Para sempre enquanto o sempre existir.
Para o bem dele, e principalmente, para meu bem. Para a minha sanidade. O que restou dela.

Antes de sumir de vista, ele olhou para trás uma última vez e, movendo os lábios sem pronunciar som algum, disse: “Eu te amo!”

Assisti a essa cena, querendo não pensar nem sentir... Peguei algumas pétalas do buquê, que ficaram caídas na soleira.
Coloquei o buquê em um vaso...
Lavei o rosto...
Escancarei as cortinas para observar, atenta, a noite taciturna, despertando-se ligeiramente em um azul infinito, pincelado de estrelas prateadas e vibrantes, com alguns mistérios cá e lá, escondidos.

...E finalmente fechei minha porta.

2 comentários:

  1. Seu texto, como de costume, muito bom! huahuahua
    Você conseguiu passar exatamente cada sentimento seu ou apenas despertou os meus.
    É um final que sinceramente me confundiu.
    Não sei como você consegue, mas consegue me fazer chorar.
    Espero que todas as turbulências passem pra você!

    O importante mesmo (ou quase): Está ótimo. Eu amei!

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  2. gostei da parte do passado mais que perfeito. da historinha também.. mas eles nao vao ficar juntos? ): ... eu acho que isso vai acabar dando num livro!! rsrs

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